Eu sou um psicanalista. Quando se fala em psicanalista, pensa-se logo em médico de gente doida. Mas não é nada disso. Psicanalista é igual ao boiadeiro... Lá está o boiadeiro, largado e mole na sua sela, as vacas pastando tranqüilas até que, de repente, sem que se saiba a razão, acontece um espanto e a boiada estoura, sai desembestada pelos pastos e cerrados. Aí o boiadeiro endurece, se firma na sela, esporeia o cavalo, e vai disparando atrás dos bois enlouquecidos, para trazê-los de novo ao pastar tranqüilo. Aí ele fica largado e frouxo de novo, na sua sela... Pois psicanalista é igual. Ele também toma conta de boiada. A boiada de que ele toma conta mora dentro da cabeça: idéias sem conta, uma atrás da outra, idéias mansas, idéias não tão mansas, todas pastando grama do dia-a-dia... Mas, de repente, por uma razão desconhecida - a gente mais desconhece do que conhece - uma idéia começa a pular, com o perigo de arrastar todas as outras, e sai esse boiadeiro da alma atrás da idéia endoidada, pra ela ficar mansa de novo. Boiadeiro usa laço de couro pra pegar vaca em disparada. Psicanalista usa laço de palavras pra pegar idéias em disparada. Ah! Nada melhor para amansar uma palavra que colocá-la, escrita, no curral do papel. Bem dizia o poeta português Fernando Pessoa que quando a gente fala uma palavra a gente conserva a sua virtude ao mesmo tempo que lhe tira o terror.
Pois aconteceu que eu, boiadeiro da alma, estava guardando o rebanho de idéias de uma cliente quando, de repente, no meio de um caso sem importância que ela contava, ela falou uma palavra, palavra comum do dia-a-dia, palavra que sempre se comportara bem - e aconteceu o inesperado: ela estourou, começou a dar saltos, não na cabeça dela, mas na minha. A palavra que ela disse foi "pipoca". Quando ela falou pipoca, algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca em gordura quente dentro da panela. Percebi, então, que as idéias muito se parecem com pipoca. Olhando para um milho de pipoca, quem não sabe não dá nada por ele. Assim acontece também com as idéias da gente. Mas, basta que haja fogo para que tanto as pipocas quanto os pensamentos se ponham a estourar.
A pipoca estourou. Pensei no sentido religioso da pipoca. Para os cristãos, sagrados são o pão e o vinho. Para o candomblé, sagrada é a pipoca. Pipoca, comida sagrada? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é o símbolo da grande transformação por que devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que ele deve ser. Ele deve ser o que acontece depois do estouro. Milho de pipoca somos nós, adultos: duros, quebra-dentes, impróprios para ser comidos. Mas, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa...
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Pipoca que não passa pelo fogo fica do mesmo jeito. Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pensa que sua hora chegou: vai morrer. De dentro da casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Em Minas todo mundo sabe o que é piruá. Piruá é pipoca que se recusou a estourar. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode haver coisa mais maravilhosa do que o jeito com elas são. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca e macia, deliciosa de ser comida com um salzinho. Não vão dar alegria para ninguém. Comidas as pipocas, os piruás vão para o lixo. Esse é o destino das pessoas que se recusam a mudar. Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
Rubens Alves

segunda-feira, 7 de maio de 2007
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