sexta-feira, 27 de abril de 2007

re - inventarse

Re-invento-me a cada dia.
Em cada palavra, em cada vírgula, em cada gíria.
Em cada palavra dita errado, em cada pensamento inventado.

Nas histórias, nos sorrisos, nos caminhos diferentes.
Re-inventome em ação e emoção.
Desvendo mistérios, descubro segredos, transcendo – as minhas próprias –
Possibilidades.

Remôo. Volto. Penso.
Cresço, sem fim, em qualquer direção.
Caminho, tropeço, escorrego, reergo.

Invento novos jeitos e expressões.
Sinto diferente a cada dia. Sonho e interpreto.
Maquino, tutano, matuto.

Matutadora de (re) invenções de si, dos outros, do mundo.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

a verdade dividida

A VERDADE DIVIVIDA

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade
In Contos Plausíveis
José Olympio, 1985

silêncio 1

Conviviam em silêncio achando que o olhar bastava. Eram felicidades, decepções, medos e inseguranças expressos em traços alterados e na profundidade do observar. Não eram necessárias palavras. Ao menos era o que entendiam. E assim viveram durante anos em um silêncio falante, provocador. As belezas de um e outro eram admiradas e veladas com os olhos do outro fechados. Não se permitiam admirar e enxergar de fato aquilo que estava por trás do olhar. Acreditavam no silêncio em par, mas não se deram conta de que o conforto era individual. Tentaram falar, não se entenderam. Era a primeira vez que o som propagava externamente. Como uma criança que aprende a caminhar, as palavras sairam tropeçadas, tortas e arranhadas, sinal de um primeiro passo de entender a realidade de fora de si mesmos. Não se entenderam. As mensagens, tão óbvias antes, se tornaram truncadas. Os olhos, não conseguem mais admirar o outro, ainda que fechados.Verte apenas, de um par deles, água e sal.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

coração

Torceram o coração
Escorrem saudades, sonhos, risos e planos
Pinga mágoa, tristeza, desilusão.

Torceram os caminhos
Escorregaram nele
Pinga água salgada.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

infelicidade?

O que é infelicidade?

A humanidade se pergunta: como encontrar a felicidade? O que é felicidade? Somos felizes ou não? Será que conseguiremos, um dia alcançar a tal felicidade?

Para estes questionamentos não faltam teorias, contos, poesias, letras de música e estudos científicos. Uns acreditam que a felicidade é a liberação de serotonina no organismo, outros acreditam que é ter tudo aquilo que se quer. A versão mais politicamente correta e pós-moderna da felicidade diz que a felicidade é ser. Ser um bom homem, ser um bom trabalhador, ser bom pai, marido, filho, amigo. A felicidade é soma, uma eterna conta de adição.

Diante da constatação de que a felicidade é algo que todos procuram, mas só encontram em pequenos instantes, como cansam de dizer os poetas de botequim, o que é então o resto da vida? A infelicidade?

Partindo-se do pressuposto que a felicidade acontece em instantes específicos podemos pensar que no tempo em que não estamos/nos sentimos felizes há a ausência de felicidade logo, a não felicidade. No latin, o prefixo in representa a negação sendo assim, nos momentos em que não estamos felizes quem reina mesmo é a infelicidade? E aí a pergunta que soa é: Se na maior parte do tempo não há felicidade, que mal há em ser infeliz? O que define a infelicidade? A tristeza? A frustração? A falta de sentido nas coisas? A rotina? Os parâmetros sociais que nos impedem de realizarmos nossa própria e instantânea felicidade?

Como nos sabemos infelizes? Por vezes, em algumas situações as pessoas nos dizem: “Não ligue pra isso. Você estava infeliz mesmo” ou então “Coitado, estava tão infeliz, sofrendo tanto, era melhor mesmo que terminasse”. Oras, quem disse isso? Por que as pessoas não podem estar satisfeitas em suas próprias infelicidades?

A sociedade rotula as pessoas ‘satisfeitas com a infelicidade’ de acomodadas. Segundo nossos padrões ser acomodado é não ter ímpeto de mudança, satisfazer-se com pouco. Será mesmo que é esse o sentido que devemos adotar para o estatus de acomodação? Talvez a acomodação esteja muito mais ligada à adaptação – a capacidade que o indivíduo tem de aceitar e se adaptar, sem se ferir, às situações que lhes são expostas – do que à falta de iniciativa, o estado blasé, dos típicos socialmente acomodados.

Cada um deve encontrar um entendimento particular do que é a felicidade para si. Falar sobre as mazelas do mundo e das pessoas é natural entre os seres que se relacionam, mas exaltar os momentos de felicidade, não. Ou seja, se apenas o que for sabido pelos outros forem coisas ruins e críticas, automaticamente todo o resto de uma situação, relação, ação ou intenção torna-se ruim, infeliz. Grande injustiça. Os porquês de não exaltarmos nossa felicidade são parte de outro assunto, mas a repulsa à ‘infelicidade’, a não aceitação da rotina, dos defeitos, das carências, das dores e sofrimentos é realmente preocupante.

Talvez o que devamos pensar é: o que realmente nos causa transtorno, incômodo? O que nos move para mudar uma situação desagradável? O que nos desperta o instinto de autoproteção? O que nos faz superar nossos medos e traumas? Talvez isso seja a real infelicidade. O motivo e o instante em que você se dá conta de que as coisas não estão boas. O ímpeto natural de transformar algo ruim em algo bom porque o algo ‘ruim’ fere.

Resta encontrar o caminho único de descobrir a real infelicidade dentro de nós. E exaltar, mais declaradamente, para nós mesmos, a beleza, a riqueza e dificuldade que é viver.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

cubos

Em um plano, caixas pretas enfileiram-se ocupando todo o espaço. Algumas abertas, outras completamente fechadas. À meia luz geram sombras, que revelam frestas e arestas entre cada cubo. Alguns estão escancardos, outros lacrados, quase todos intercalados por caixas semi-abertas de possibilidades. Algumas não têm fundo. Outras, são pouco profundas - não cabe quase nada dentro - e com estas não se pode contar. Há caixas que têm fundo falso: para arriscar. É largar ou jogar-se dentro delas para saber onde se pode parar.

Fato é que os cubos estão lá desde que nos entendemos, mas não somos capazes de vê-los por inteiro. Os que tem os olhos mais abertos conseguem enxergá-los e movimentá-los formando um desenho correto e inconstante. Outras pessoas, carentes de olhos, nem se dão conta da existência deles, que ficam lá, ao longo dos anos, parados e empoeirados.

O abre e fecha das caixas faz a vida acontecer. As movimentações, espontâneas ou forçadas, determinam caracterísitcas de cada indíviduo e modos diferentes de ação. Quanto mais caixas destravadas, maior a flexibilidade do desenho e sua capacidade de adaptar-se a cada momento.

Compassadas: Cada conjunto de cubos pretos cria seu próprio movimento de luzes, aberturas, frestas e infinitos. Associa-se, algumas vezes, a outros cubos quando seu formato é capaz de gerar novos encaixes. Aí então passamos a interligar caixas, sombras e arestas afinando as disposições... Em outros momentos, a configuração do desenho faz com que as asssociações não acrescentem. Como se o fundo de uma caixa impedisse a tampa de outra abrir. Como se uma sombra criada sobre um cubo entreaberto fizesse parecê-lo fechado. Noutra circunstância, a luz que sai de uma caixa alheia pode iluminar tantas outras dimensões inexploradas que apresenta novas caixas, até então não vistas.

restos

Para reiventar-se fica um pouco do passado, da alegria, da dor. As lembranças que demoram a se recolher inventam novas pessoas, novos sonhos. Inventamos a imagem quando conhecemos e quando a perdemos também. Por isso, quando sós, sofremos pelos sonhos inventados e perdidos. Imaginados, irreais. Reinventemos os sonhos, os caminhos, os desenhos e tijolos.

Resíduo

Carlos Drummond de Andrade


De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixono queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsulade revólver...
de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.